Recebi um
comentário sobre minha última publicação, o texto sobre o Teorema da Astrologia Arquetípica, e quis debruçar-me sobre um aspecto que me pareceu importante.
Escreveu-me
a leitora: “ainda há muito o que refletir sobre a astrologia e como podemos
trazer esse conhecimento tão sublime para um patamar mais lógico, sem perder a
magia da subjetividade”.
É delicado
e complexo o conjunto de aspectos encadeados e associados por ela à Astrologia:
sublime, mais lógico, magia e subjetividade.
1) Sublime,
do latim sublimis: “elevado, alto,
nobre”; 2) lógico, do grego logikós,
“próprio do raciocínio”, já que logiké
é a “arte de raciocinar”; 3) mágico, do grego mageias, “doutrina dos magos”, do farsi (persa) magush, “ser capaz”, “ter poder”, e do latim
magicus, “que fascina”; 4) subjetividade,
ou relativo ao espaço mais íntimo e interior do sujeito.
Embora à
sua maneira, já que o pensar da Astrologia não requer mais lógica do que tem,
cabendo até serem discutidas as premissas a partir das quais ele se desenvolve,
mas, não, o nível de sua lógica (que na verdade é bem simples), parece-me que ela
falou da vaga aura de magia que ainda reveste a imagem que se tem da Astrologia,
e da forte tendência, em muitos que com ela lidam, a pender para o que passa
por ser subjetivo, mas que aqui ou acolá pode ser apenas dubiedade ou deliberada
imprecisão, protegendo o emissor da mensagem de ter checada ou negada a sua
conclusão interpretativa. Em caso de desacordo ou desacerto, vem em defesa a
afirmação: “não foi bem isto, ou assim, que eu quis dizer”.
Mas gostaria
de comentar a aura de magia, já que há muito tempo se associa os conhecimentos
astrológicos ao que se supõe ser magia e isto mantém vivo um séquito de
preconceitos e noções vagas e imprecisas sobre a Astrologia.
Basta lembrar S. Agostinho, que em seu livro
Cidade de Deus, escrito nas primeiras décadas do século 5, associou Astrologia a
feitiçaria:
“Quando os astrólogos admiravelmente prognosticam
muitos eventos que se mostram verdadeiros, isso ocorre por influência de
espíritos não bons, a cujo cargo está estabelecer nos homens estas falsas e
danosas opiniões sobre os desígnios e influxos das estrelas, e não por alguma
arte que observa e analisa o horóscopo, porque ela não existe”.
Na fase que atravessamos, em
que passo a passo a Astrologia poderá conquistar a possibilidade de ser reconhecida
pela Ciência, há enorme necessidade de cuidado e atenção com a precisão dos
termos que se usa.
Em Astrologia em diálogo com a Ciência e a Fé alertei:
“Vá lá que,
utilizando metáforas e metonímias, como recurso figurativo de expressão diga-se
‘Marte ocasionou...’ ou ‘em consequência de Júpiter estar...’, mas
que nunca se esqueça de não ser de algo causado
pelos Planetas Marte ou Júpiter que se está falando com propriedade, e, sim, só
daquilo que os símbolos astrológicos Marte e Júpiter denotam. Assim, não se abandona
a poesia, mas não se abre mão do conceito correto”.
Quando se
fala de magia em associação direta com a Astrologia, de imediato se pensa no Picatrix, ou Gayat Al-Hakim (em árabe, “O objetivo do sábio”), obra traduzida
para o espanhol por ordem de Alfonso X de Castela entre 1256 e 1258.
O livro, com
400 páginas em quatro volumes, associa os Planetas e Signos zodiacais a talismãs,
invocações e estados alterados de consciência (com o uso de princípios
psicoativos de origem vegetal, como haxixe e opiáceos, para facilitar a clarividência), buscando
ensinar como atrair e direcionar suposta energia espiritual provinda do cosmos.
Dentro do sistema de crenças sobre o qual o Picatrix se elabora, todos os Planetas podem ser invocados como se fossem entes espirituais (de certo modo, recobrando algo do platonismo). Para invocar
Saturno, por exemplo, nele se lê:
“Oh, Espíritos do Grande Mestre, Governante do Grande Nome e com
grande importância. Tu, mestre Saturno, o duro, o frio, o escuro, o beneficente, o
honesto, o amigo, o fiel, o único governante incomparável que mantém seus
acordos, o mais distante, o cumpridor de promessas, o exausto, o trabalhador, o
único com tristeza e rabugice, aquele que se afasta da felicidade e das
alegrias, o velho e experiente enganador, o sábio, o entendido, o fixador, o
destruidor, tu tornas os buscadores infelizes quando lhes dá má sorte e os
fazes felizes quando lhes dá boa sorte. Peço, Primeiro Pai, em nome de seus
deuses e suas maneiras generosas, para fazer isso, isso e aquilo por mim (...) ”.
Após ter sido traduzido para o latim, e conforme
ao que se registra, o Picatrix firmou
importantes pontes entre a filosofia hermética ocidental e as tradições
esotéricas do Oriente Médio, razão pela qual foi alvo de estudo por estudiosos
como Marsílio Ficino e Pico della Mirandola (dois dos principais filósofos do
Renascimento), Pietro d’Abano (astrólogo e professor de Medicina em Pádua), Heinrich
Cornelius Agrippa von Nettesheim (autor do mais afamado tratado renascentista de
magia), Johann Valentin Andrea (teólogo alemão que parece ter sido o redator
dos principais Manifestos Rosacruzes), e os historiadores contemporâneos Lynn
Thorndike e Frances Yates.
Como
se vê, há milênios associação assim é estabelecida, dada a suposição de serem
metafísicas (por isso, ocultas) as
dinâmicas que tornam a Astrologia efetiva.
Para
muitos, hoje em dia, buscar comprovar que há causas naturais e não metafísicas,
e nem mágicas, da efetividade da Astrologia é reducionismo.
De
certo modo é, mesmo, já que uma das primeiras tarefas da Ciência é exatamente buscar
explicar o máximo de fenômenos pelo mínimo de possíveis causas atuantes. Mas
não é mais reducionismo do que tentar explicar toda a efetividade da Astrologia
pela ação de energias dos corpos siderais,
com a enorme vantagem de não se ter de lidar com argumentos inviáveis e
insustentáveis, como são os que pressupõem existirem estas tais energias.
Ademais,
a explicação a que se possa chegar pela adoção de conceitos mais recentes, provindos
da Biologia Evolutiva, da Física Quântica e da Psicologia de Jung, como os que
abordo em Astrologia em diálogo com a
Ciência e a Fé, mesmo podendo ser tida como reducionista passa bem longe de
ser apenas simplificação, à medida
que obriga à descrição de um tipo de natureza que ainda exige explicações com
intenso conteúdo lírico, enquanto se a estuda e a descreve, dada a sua
complexidade quase inexprimível.
Isso
não significa que, ao se aproximar das ciências, a Astrologia necessariamente
perderá seu poder de encantar, assim como, para o sociólogo Max Weber, a Ciência produziu o
“desencantamento do mundo”, na medida em que desmagificou a existência, isto é, retirou a magia de entre as
supostas condições determinantes da dinâmica das coisas.
Neste
sentido, Alan Delazeri Mocellim, Doutor em Sociologia pela Universidade de São
Paulo, lembrou em sua tese de Doutorado Ciência,
técnica e reencantamento do mundo que:
“A ciência clássica,
ao eliminar a magia, os espíritos e o mistério da natureza, acabou por
desencantar o mundo [...] No entanto, ao retirar do mundo o antigo animismo, a
ciência o substituiu pelo atomismo: a ideia de energia veio para substituir as
forças ocultas do mundo natural, substituindo o mistério pelo mensurável”.
Parece-me
bom, por essa razão, lembrar que o íntimo desejo, em muitos, de que o mundo
seja, nem que em pouca medida, mágico
ou encantado (inúmeros de nós somos,
bem no fundo, românticos...), termina motivando-os a se manterem apegados à
noção de energias dos astros, ou força das estrelas (que é o que sobrou
após o sumiço da magia), e resistentes à busca de demarcação científica da
Astrologia – quando se poderia corroborá-la no que for possível ou refutá-la.
Como André Le Boeuffle, professor de latim e grego na Universidade de
Amiens e especialista em Astronomia antiga, o fez em Les
astres et les mythes, la description du ciel (Os astros e os mitos, a descrição do céu), poderíamos então lamentar:
“Enquanto a nossa época moderna tende a seccionar
as diversas disciplinas, era um privilégio invejável da Antiguidade unir
ciência e poesia”.
Mas
sou otimista!
Parece
que a Ciência, na virada do século 20 para o 21, vai conseguindo construir
pontes explicativas constituídas dela mesma e de lirismo, muito lirismo! exatamente
dentre os pesquisadores mais firmemente dedicados às Ciências (ditas) Exatas.
Por exemplo, Werner Heisenberg, o importante
físico de Partículas que desenvolveu o Princípio
de Indeterminação, mencionou:
“A teoria quântica
nos fornece uma ilustração notável do fato de que podemos entender
completamente uma conexão, embora possamos apenas falar dela em imagens e
parábolas” (que são, como se sabe, atributos da poesia).
Já, o físico Franco Selleri, Fellow do
Instituto Nacional de Física Nuclear da Itália e Membro da New York Academy of
Sciences, relatou em Quantum paradoxes
and physical realities (Paradoxos quânticos e realidade física) outra noção
de Heisenberg:
“Os físicos estão se acostumando, pouco a
pouco, a considerar as órbitas eletrônicas, etc., não como realidade e, sim,
como uma espécie de ‘potência’. A linguagem terminará se acostumando, ao menos
até certo ponto, a esta situação real. Mas não é uma linguagem precisa com que
se possa empregar os modelos lógicos normais, é uma linguagem que produz
imagens em nossa mente, porém junto com elas provoca também a sensação de que as imagens só têm uma vaga relação com a
realidade, que representam somente
uma tendência até a realidade”
(itálico meu).
Por
fatos assim, e segundo Morris Berman, Doutor em Filosofia pela Universidade
norte-americana Johns Hopkins, atualmente é possível um reencantamento do mundo, mas não pelo retorno à crença em magia ou em princípios
metafísicos regentes do universo, como ocorria antes do surgimento do modelo
científico que passou a prevalecer após o século 17.
Em
seu modo de ver, apresentado em The
reenchantment of the world (O reencantamento do mundo), este reencantamento pode (e deve) ocorrer na medida em que
consigamos admitir que somos, o mundo, os humanos e nossas complexas
ocorrências, parte de um todo multiforme que integramos e nos integra.
Como
ele propôs nesta sua obra:
“A retomada da visão
de mundo alquímica numa forma crível, científica”.
Um
pouco tempo antes, algo assim só parecia ser possível se fosse apoiado em uma
visão supersticiosa, metafísica ou de fundo religioso, ou com base naquilo que
em algumas filosofias apareceu como a ideia da “simpatia entre todas as
coisas”.
Hoje,
porém, como as descobertas da Ciência vão propiciando a partir da Física de Partículas,
e também da Biologia, da Química e das Ciências do Comportamento, isso passa a
parecer plausível pela admissão da existência de fatores causais que, de um
modo que só mais recentemente viemos descobrindo, parecem atuar desde fora do
espaço-tempo de modo a conectar e codeterminar diferentes camadas e formas da
existência no tempo e no espaço, objetivas e ou subjetivas, mentais e ou extramentais,
manifestadas e ou em potência, cocausando as coisas e sendo alterados
recursivamente (os fatores causais) por efeito das próprias coisas causadas, de
um jeito que, mais antigamente, parecia ser magia ou maravilha e encantamento e,
hoje, é ciência de ponta.
Neste
sentido é que a adoção do conceito de energias
de corpos siderais atuando sobre os fatos da existência e sobre os
fenômenos somáticos, mentais e emocionais humanos, que predomina na Astrologia
convencional, ainda é um perverso pedágio intelectual pago ao mecanicismo
residente nos modelos anteriores de compreensão e explicação da realidade, mais
estreitos, vendo os fatos da vida como expressões decorrentes da ação quase
mecânica, já que enérgica, de corpos siderais.
Em
seu lugar, surge e ganha cada vez mais espaço a admissão da possível e provável
existência de dinamismos virtuais arquetípicos com os quais a realidade
manifestada continuamente interage por recursividade, de modo a integrar em uma holarquia universal – que alguns poderiam chamar de
“plano de Deus para a existência” – todos os componentes, manifestos e ou
potenciais, por meio de dinâmicas causais de efeitos-padrão (associados a
hábitos) cuja probabilidade de ocorrência no espaço-tempo pode, então, ser
denotada, caso a caso, e com maior ou menor acerto, pelo simbolismo astrológico
aplicado a cada coisa, evento ou pessoa.
Em
um cenário como este, que está vindo e avançando cada vez mais, o ganho em
percepção e admissão de possíveis causas naturais da efetividade da Astrologia
poderá entronizar o encantamento, enquanto vivência intelecto-afetiva, onde ele
de fato deve ficar: extasiada admiração contínua pela maravilha da vida, ao
mesmo tempo em que se busca entendê-la até onde for possível em cada etapa e
faceta do saber humano.
Basta
rememorar Albert Einstein, em Como vejo o mundo:
“O mistério da vida
me causa a mais forte emoção. É o mesmo sentimento que desperta a beleza e a
verdade, cria a arte e a ciência”.
Como, a
meu ver, ocorre também com a Astrologia, sem que haja magia nisso, senão a
mágica própria da mente, que é potente para tanta coisa ao perceber, registrar,
compreender e simbolizar a existência, ao tentar explicá-la.
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